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Publicado em 5 de Maio de 2025

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A Onda Crescente: Adoção de IA nos Tribunais Brasileiros

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Relatório elaborado pelo gabinete do ministro Alexandre de Moraes informa que foram tomadas mais de 6 mil decisões relacionadas aos ataques intitulados antidemocráticos, o conhecido “8 de Janeiro”. Imaginem um único juiz (ministro), tomar tantas decisões, contextualizando e fundamentando cada uma delas ao longo de um ano, além dos outros afazeres, como audiências etc.

O Brasil enfrenta uma das maiores taxas de congestionamento judicial do mundo. Não é à toa que o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 16, da Agenda 2030 da ONU, foca na promoção da paz, justiça e instituições eficazes. Por isto, o desenvolvimento de soluções alimentadas por IA ganha cada vez mais tração. O Programa Justiça 4.0 mapeou mais de 100 projetos de IA espalhados por quase todos os tribunais. Ferramentas automatizam triagem de processos, cumprimento de mandado. Inauguraram IA generativa no STJ, o Logos; e, no STF, MARIA. A elaboração de minutas e sumarização de votos com IA se tornou realidade.

Ademais, o CNJ disponibilizou um ecossistema de inteligência artificial, denominado Plataforma Sinapses. O sistema Codex integra-o, solução que engloba um módulo extrator e conversor, além de ferramentas de reconhecimento de caracteres, que visam reunir dados em um repositório de dados processuais, englobando metadados, movimentações processuais e os documentos devidamente convertidos em formato de texto simples, aptos a serem prontamente consumidos por ferramentas de ciências de dados e por modelos de inteligência artificial.

Ocorre que a gestão dos tribunais encontra obstáculos pela própria natureza da instituição. Cita-se o Repositório Nacional de Projetos de Software e Versionamento de Arquivos do – Git.jus, fechado.

O CNJ já regulou o uso de IA no Judiciário pela Resolução 332/2020 e atualizou diretrizes com a Resolução 615/2025; aguarda-se o Marco Legal Nacional de IA (PL 2.338/2023). A adesão dos usuários a ferramentas fora da supervisão e homologação dos órgãos dos tribunais responsáveis (fenômeno conhecido como “Shadow IT”) levantam riscos tais como vazamentos de dados sensíveis de processos e partes, violando a LGPD e o sigilo profissional, quiçá configurando crimes, passíveis de responsabilização civil, administrativa e criminal. Além disso, essa prática cria uma zona cinzenta de falta de transparência e auditabilidade, impossibilitando verificar a origem e a confiabilidade das informações geradas ou a influência de algoritmos opacos nas atividades judiciais. A precisão e a confiabilidade dessas ferramentas não são garantidas; o uso de IA não homologada pode introduzir erros factuais, 'alucinações' ou informações desatualizadas nos trabalhos, com potencial impacto negativo nas análises e minutas.

Soma-se a isso o risco de perpetuação de vieses e discriminação, já que tais ferramentas não foram avaliadas quanto à adequação ao contexto jurídico e social brasileiro.

O desenvolvimento de soluções próprias é indispensável, mas licitações e contratações são complexas, somadas aos desafios de talento (capacitação e quantidade de pessoas), qualidade de dados, integração de sistemas legados, resistência cultural e compliance às normas pertinentes.


Expandindo o Leque de Aplicações e Tecnologias

A despeito do cenário complicado introduzido, o desenvolvimento está longe de estar estagnado.

Além das ferramentas de automação processual e IA generativa para apoio à decisão, outras aplicações emergem no cenário judicial brasileiro. Chatbots e assistentes virtuais (como Sofia no TJBA e Iara no TJRR) buscam melhorar o atendimento ao cidadão, respondendo dúvidas frequentes. Sistemas especializados como o Sniper (PJBA/CNJ) focam na recuperação de ativos na fase de execução, cruzando bases de dados complexas. Iniciativas como o "Simples e Fácil" (TJGO) atacam a barreira do "juridiquês", usando IA para tornar a linguagem das decisões mais acessível.

Tudo isto liberando servidores da tarefas repetitivas, para se dedicarem às de maior exigência intelectual, melhorando a qualidade e reduzindo a espera do cidadão, ainda que não haja ampla divulgação de KPIs e outras métricas por enquanto.

As áreas de aplicação mais comuns, conforme os dados analisados, são a análise de texto (presente em 32 projetos mapeados) e a organização de dados (19 projetos), seguidas pela otimização de processos, indicando um foco claro no tratamento do grande volume de informação textual e na estruturação do acervo processual.

Essa diversidade demonstra uma busca pragmática por soluções que supram os múltiplos gargalos da atividade judicial.

Além disso, em busca de métodos alternativos de solução de conflitos, alguns países têm enfatizado em câmaras de arbitragem, acompanhadas, recentemente, de “robôs juízes”. Um deles é o Arbitrus, que pretende competir com o próprio Judiciário norte-americano. Desde 2019, já se ouvia que a Estônia pretendia substituir seus juízes por robôs, ideia com a qual se flerta, principalmente, em demandas judiciais de menor complexidade e de quantias envolvidas menores, mas notícias de modelos alucinando com grande impactam severamente na rápida adesão de tal tecnologia, ainda mais sem mão de obra especializada para eliminar e mitigar riscos e manobrar incidentes.


Aprofundando os Desafios Operacionais, Estruturais e Técnicos

Os desafios listados representam barreiras concretas e multifacetadas. A falta de pessoal qualificado em IA e ciência de dados, apontada como principal dificuldade, limita severamente a capacidade de desenvolvimento, implementação e gestão eficaz dessas tecnologias. Tecnicamente, os dados revelam um predomínio da linguagem Python (utilizada em 36 projetos mapeados), seguida por Java (12) e outras tecnologias (12), refletindo tendências globais no desenvolvimento de IA, mas também concentrando a demanda por profissionais com habilidades específicas. A qualidade, padronização e disponibilidade de dados processuais estruturados são cruciais; dados de baixa qualidade ou enviesados comprometem a performance e a equidade dos modelos de IA.

De todo modo, como os tribunais prestam serviço jurisdicional, as contratações, até então, eram predominantemente de pessoas ligadas diretamente à atividade-fim; e não tanto voltadas aos profissionais da área da tecnologia.

A integração com sistemas legados é sempre um obstáculo técnico e financeiro considerável. A cultura organizacional e a necessidade de redesenhar fluxos de trabalho demandam gestão da mudança. A conformidade contínua com a LGPD exige vigilância sobre privacidade e segurança. Frequentemente, a infraestrutura tecnológica também não acompanha as demandas computacionais da IA.


Navegando na Dupla Camada Regulatória

O arcabouço regulatório da IA no Judiciário se constrói em dois níveis. Internamente, as Resoluções do CNJ (332/2020 e a mais recente 615/2025) estabelecem a base ética e de governança, enfatizando princípios como respeito aos direitos humanos, não discriminação, transparência algorítmica, supervisão humana e regras para IA generativa.

Externamente, o PL 2.338/2023 (Marco Legal da IA), se aprovado, instituirá um regime nacional baseado em risco, com obrigações como Avaliação de Impacto Algorítmico (AIA) para sistemas de alto risco, direitos dos afetados e regras de responsabilidade civil. O Judiciário terá que navegar e cumprir exigências de ambas as camadas.


Plataformas Centralizadas vs. Fragmentação na Prática

O ecossistema Sinapses/Codex do CNJ visa centralizar e padronizar, evitando problemas de compliance e tornando os processos mais eficientes. Contudo, a prática revela um cenário heterogêneo: desenvolvimento interno em tribunais superiores (Logos, MARIA), adoção de ferramentas comerciais (Microsoft, Google) e colaborações pontuais. Essa diversificação pode levar à fragmentação, dificultando interoperabilidade e disseminação de conhecimento.


O Equilíbrio Delicado: Eficiência vs. Garantias Fundamentais

A tensão central reside em equilibrar a busca por eficiência com a obrigação de garantir justiça, equidade, transparência e devido processo legal. A implementação de IA não pode comprometer a imparcialidade, introduzir vieses ou tornar o processo decisório opaco. Cada nova ferramenta exige avaliação criteriosa de riscos e benefícios, assegurando a primazia do julgamento humano qualificado.


Conclusão: Rumo a uma Justiça Empoderada pela IA

A trajetória da IA no Judiciário brasileiro é de expansão, com foco crescente em governança e uso responsável, impulsionado pela regulamentação. Superar os desafios de recursos, dados e cultura, enquanto se navega pela complexidade regulatória, definirá o sucesso dessa transformação. A experiência brasileira, com seus avanços e percalços, continua sendo um laboratório relevante para a comunidade global interessada na aplicação responsável da IA em setores críticos, alinhando-se à missão da I2AI de promover uma adoção de IA sustentável e benéfica para a sociedade.

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Sobre o Autor

Diego Sonnenthal

Diego Sonnenthal

Servidor TJSP

Profissional multidisciplinar com experiência em Direito, tecnologia e gestão.

Desde 2016 no Tribunal de Justiça de São Paulo, analisando processos complexos e redigindo decisões e sentenças. Atuou em consultoria internacional, onde liderou equipe e gerenciou contas de projetos estratégicos.

Especialização recente em Inteligência Artificial aplicada ao desenvolvimento, buscando integrar soluções tecnológicas inovadoras na área jurídica

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